COMO O CÉREBRO “PUXA PARA O VISUAL” NO CÁLCULO MENTAL NO AUTISMO
1) O ponto de partida: ver primeiro os detalhes, não o todo: A literatura descreve, de forma consistente, um viés para o detalhe no autismo: é mais natural isolar partes, padrões e alinhamentos do que integrar rapidamente a forma global (p. ex., desempenho em testes de figuras embutidas e tarefas de organização visuoespacial) — (Shah & Frith, 1983; eixo Local-Global). Em matemática, isso favorece decompor, agrupar e alinhar visualmente os componentes de um problema antes de manipular símbolos.
Consequência: quando a tarefa exige resolução “de cabeça”, sem papel, o caminho habitual (construir um quadro visual para depois operar) fica bloqueado.
2) O gargalo do sequenciamento verbal: A Aritmética das Escalas Wechsler — Escala Wechsler de Inteligência para Adultos (WAIS) e Escala Wechsler de Inteligência para Crianças (WISC) — é oral, cronometrada e demanda vários passos em sequência: reter números, transformá-los na ordem correta, atualizar resultados intermediários e responder rápido. Para quem depende de suporte visual para organizar o raciocínio, isso eleva a carga de memória operacional e o custo temporal (o tempo de resposta se alonga, mesmo com compreensão conceitual intacta).
Consequência: o desempenho pode piorar não por “não saber”, mas por forma de apresentação que não favorece a estratégia mais eficiente daquele cérebro.
3) A resposta do sistema - imagética mental como compensação: Quando o papel e o diagrama não são permitidos, muitas pessoas autistas tentam converter símbolo em imagem, “desenhando por dentro” linhas numéricas, blocos, setas e “balanças” de equações. Isso é uma estratégia compensatória: transfere a carga do trilho verbal-sequencial para redes visuoespaciais (p. ex., precuneus, área ligada à construção de cenas e imagética), que tendem a ser pontos fortes (Simões et al., 2018).
Consequência ambivalente: a estratégia ajuda a manter o raciocínio, mas, sem apoio externo para organizar o quadro geral, a atenção pode prender-se ao microdetalhe; integrar tudo de memória fica trabalhoso e lento.
4) O custo cognitivo e funcional: Quatro fontes de custo se somam:
- Memória operacional: manter vários “quadros mentais” ao mesmo tempo.
- Tempo: a estratégia visual interna demora mais do que rabiscar um esquema simples — e a prova é cronometrada (diferenças de tempo são frequentes na literatura de velocidade de processamento).
- Integração global: sem o diagrama externo, fica mais difícil “ver o todo” e checar rapidamente consistência.
- Sequências motor-imagéticas: estudos de imagética motora mostram atraso/ineficiência e efeitos biomecânicos no desenvolvimento (Johansson et al., 2022), o que sugere que transformações mentais sucessivas (rotacionar, deslocar, agrupar mentalmente) podem onerar o tempo.
Resultado prático: respostas mais lentas e, às vezes, omissões ou erros por sobrecarga, apesar de bom entendimento matemático em contextos com suporte visual.
5) Por que “compensação” não é “defeito”: Em vários domínios, o autismo mostra preservação de resultado por vias alternativas - por exemplo, com hiperativação do hipocampo para sustentar memória episódica quando certas conexões estão menos eficientes (Hogeveen et al., 2020). Analogamente, representações figuradas sustentam o raciocínio matemático quando são permitidas. Se a tarefa inibe o suporte visual, perde-se a via alternativa mais eficaz para aquela pessoa.
6) O encadeamento em linguagem simples (passo a passo)
- Preferência por detalhes → precisa ver a estrutura para organizar o pensamento.
- Prova oral e rápida → impede o diagrama e exige sequência verbal.
- Cérebro adapta → usa imagética mental para “desenhar por dentro”.
- Sem papel → integração do todo fica difícil; tempo sobe.
- Desempenho cai → não por falta de compreensão, mas por alta carga imposta ao estilo de processamento.
7) O que a base de evidências indica:
- Detalhe > todo (Local-Global): tendência a focar partes antes de integrar o conjunto (tarefas visuoespaciais clássicas).
- Estratégia visual em lugar da corporal/linguística: em perspectiva visual, a rotação de objeto/cena aparece como rota preferida; instruções adequadas mudam o desempenho (literatura de VPT/estratégias).
- Imagética e redes de cena: precuneus recruta mais para sustentar desempenho.
- Tempo importa: diferenças de latência e custo temporal são sensíveis, mesmo quando a acurácia é próxima.
- Vias alternativas: hipocampo e outras redes podem compensar para manter o resultado (Hogeveen et al., 2020).
- Desenvolvimento e transformação mental: imagética motora aponta custos nas transformações internas ao longo da infância.
Orientações práticas para avaliação e intervenção
Na avaliação (WAIS/WISC):
- Registre tempos de resposta e estratégias (verbal vs visual), não apenas a pontuação.
Assim, para muitas pessoas autistas, proibir o desenho é como apagar o quadro do raciocínio. A imagética mental surge para salvar a tarefa, mas cobra caro em tempo e esforço. Quando permitimos e ensinamos a tradução imagem ↔ símbolo, vemos o potencial matemático aparecer — de forma mais rápida, clara e menos desgastante.