Ontem me parei com uma republicação da @dra.mirellase a partir da publicação de @pauloliberalesso, que traz à tona um debate fundamental sobre o diagnóstico tardio do Transtorno do Espectro Autista (TEA) em mulheres e adolescentes do sexo feminino. O médico questionou o uso do termo "leve" no diagnóstico tardio de TEA da paciente citada, aos 17 anos, apesar das dificuldades que ela enfrentava desde os 8 anos, conforme relatado. É certo que essas dificuldades já estão presentes antes dessa idade. Entretanto, no início de sua adolescência, quando as sociais ansiosas ficaram a ficar mais complexas e a rede de apoio mais escassa, iniciaram-se aos 12 anos a busca por tratamento e receberam os diagnósticos de desatenção e depressão. No entanto, sem resposta clínica, a condição só se agravava,
Desta forma, gostaria de ampliar o debate importante e divergir que o problema levantado pelo médico não reside no grau "leve" do autismo, mas sim na falta de um diagnóstico adequado no momento apropriado.
Os termos "leve", "moderado" ou "grave" referem-se apenas ao nível de suporte necessário quanto ao funcionamento adaptativo por parte do indivíduo, com base na premissa da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da OMS. No entanto, esses termos não refletem em sua classificação os efeitos adversos do TEA, como são conhecidas co-ocorrências que podem ser profundamente prejudiciais, tanto para os indivíduos dependentes, quanto para o seu contexto, especialmente, quando existe falta de tratamento para o quadro, como foi o caso do paciente citado pelo médico.
A desatenção associada ao TEA muitas vezes é confundida com outros transtornos, como o TDAH, apesar de a literatura científica indicar que a comorbidade entre eles é mínima e numa análise ampliada apresentarem características diagnósticas distintas. O que ocorre frequentemente são erros de diagnóstico. De fato, a desatenção no TEA é resultado de falhas sensoriais nos canais visual, auditivo e sinestésico, bem como nos sistemas proprioceptivo e vestibular (lembrem-se que podem ser hiper-receptivos, hipo-receptivos e/ou mistos), afetando a atenção compartilhada, atenção conjunta e motivação social.
É importante ressaltar que a mera identificação e compartilhamento de sintomas não constituem um diagnóstico. Deve-se considerar o quadro clínico por meio de um diagnóstico diferencial, análise comparativa - pensamento analógico e pensamento crítico (pensamento de ordem superior) direcionado ao diagnóstico, permitindo-nos ir além das diretrizes e acompanhar as atualizações da literatura científica, que são tão necessárias.
A motivação desempenhou um papel crucial nos sentimentos subjacentes à atenção conjunta no TEA. A medição dos processos de atenção conjunta, da regulação visual e do desengajamento atencional desde tenra idade pode ajudar no diagnóstico e consequentemente, na intervenção precoce. Estudos demonstram que a motivação modula a regulação visual em relação à atenção conjunta e que o desengajamento atencional também está relacionado a ela.
Infelizmente, é esperado que provoquem co-ocorrências como depressão, ansiedade e tentativas de suicídio no contexto do TEA, em especial na ausência de tratamento, e a literatura científica explica as razões por trás desses quadros ao diagnóstico tardio associados. Histórias como a da paciente desse médico são comuns em ansiosos que lidam com a avaliação de TEA tardio, especialmente em relação às mulheres.
O diagnóstico na idade adulta passou a ser reconhecido como uma questão clínica importante devido ao aumento da conscientização sobre o autismo, à introdução dos critérios diagnósticos e à compreensão do espectro autista. Isso levou à identificação de uma geração de pessoas que antes eram excluídas de um diagnóstico de autismo clássico. Entretanto, muitos clínicos ainda estão míopes sobre essas mudanças.
Ao avaliar e diferenciar diagnósticos, é fundamental considerar comorbidades reais, comportamentos sobrepostos a outros transtornos psiquiátricos e diferenças no fenótipo feminino. As mulheres e meninas autistas apresentam perfis de sintomas distintos em áreas como interação social, comunicação padrões restritos e repetitivos de comportamento e interesses.
No entanto, erros nos diagnósticos anteriores de meninas e mulheres com TEA são uma questão preocupante e preocupante. Frequentemente, essas mulheres desenvolvem estratégias de "camuflagem" para esconder suas dificuldades e se adaptar às normas sociais. Isso pode levar a diagnósticos equivocados, uma vez que os sinais típicos do autismo podem ser menos claros nelas.
Além disso, as ferramentas de diagnóstico existentes, incluindo as consideradas como padrão ouro, como a Autism Diagnostic Interview-Revised (ADI-R) e Autism Diagnostic Observation Schedule (ADOS-2), bem como escalas autoperceptivas e heteroperceptivas, podem não ser suficientes pessoas para identificar o autismo em mulheres. Essas ferramentas foram desenvolvidas sem levar em consideração as diferenças de sexo, o que pode resultar na subestimação dos sintomas e na exclusão de mulheres autistas.
É crucial que os profissionais de saúde e os investigadores estejam cientes das diferenças clínicas de sexo e sejam sensíveis às manifestações únicas do autismo em mulheres. Isso permitirá um diagnóstico precoce e preciso, garantindo que as mulheres com autismo recebam o apoio e tratamento adequado.
A conscientização sobre
as características fenotípicas distintas do autismo no sexo feminino está
crescendo, e é necessário que essa compreensão se reflita na prática clínica e
nas diretrizes de diagnóstico. A identificação correta das mulheres autistas é
crucial para que elas possam acessar os serviços e intervenções necessárias,
além de ajudá-las a compreender a si mesmas e encontrar apoio em suas jornadas.
É importante destacar mais
uma vez que o problema não está no grau de severidade do TEA, mas sim na
ausência de um diagnóstico adequado no momento certo. O diagnóstico tardio pode
resultar em sofrimento prolongado, dificuldades emocionais e até mesmo
tentativas de suicídio, como mencionado no relato do médico. Portanto, é
fundamental que os profissionais de saúde estejam atentos aos sinais de autismo
em todas as idades e em ambos os sexos, a fim de garantir que ninguém seja
deixado para trás sem o suporte adequado.
A ciência continua a
avançar e a nos fornecer uma compreensão mais profunda do autismo, incluindo
suas manifestações específicas em mulheres e adolescentes do sexo feminino. À
medida que essa compreensão se expande, é nosso dever como profissionais de saúde
e pesquisadores atualizar nossas práticas e diretrizes de diagnóstico para
garantir que ninguém seja negligenciado ou diagnosticado erroneamente.
Para alcançar isso, é
necessário um esforço conjunto de profissionais de saúde, pesquisadores,
educadores e sociedade em geral. Devemos promover a educação e a
conscientização sobre o autismo, especialmente no que se refere às suas
características fenotípicas distintas em mulheres. Também é crucial desenvolver
instrumentos de avaliação sensíveis ao sexo, que possam capturar adequadamente
os sinais de autismo em mulheres e adolescentes do sexo feminino.
Além disso, é importante
ouvir e valorizar as experiências daqueles que vivenciam o autismo em primeira
mão, bem como de suas famílias. Suas histórias e perspectivas podem fornecer
insights preciosos que nos ajudam a aprimorar nossas práticas e políticas em
relação ao diagnóstico e tratamento do autismo.
Acredito firmemente que,
com uma abordagem sensível ao sexo e uma maior conscientização, podemos
garantir que todas as pessoas, independentemente de seu sexo, recebam o suporte
e tratamento adequados desde cedo. Ninguém deve passar por décadas de
dificuldades antes de receber um diagnóstico preciso e o apoio necessário.
Vamos trabalhar juntos
para construir um futuro em que todas as pessoas com autismo, sejam elas
mulheres, homens ou indivíduos de outros gêneros, tenham suas necessidades
reconhecidas, sejam compreendidas e possam alcançar seu pleno potencial.
Juntos, podemos garantir que ninguém seja deixado para trás no caminho em
direção à redução de barreiras oriundas da neurodiversidade e em prol do
bem-estar.
#Autismo #Inclusão #DiagnósticoPrecoce
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